
Nos seus dedos esguios, o cigarro extinguia-se ao ritmo das batidas do seu relógio de pulso. À sua frente um lençol ondulante que, por vezes, lhe vinha beijar os pés timidamente. As ondas afagavam-lhe a pele e aquele rendilhado pérola salgado escondia-se por detrás dos dedos. Abraçou o cigarro sofregamente naquele momento, sem pensar na água gelada que lhe encarquilhava o corpo. O sabor acre povoava-lhe a memória. Tudo devia ficar nas brumas de forma a que não pudesse aceder aos seus fantasmas. Tudo devia permanecer tal qual lago estagnado, envolto pela névoa da manhã. Mas era mais forte do que tudo. Enervava-lhe a arrogância dos ignorantes, odiava aquele culto mesquinho do material e do individualismo, abominava aquelas pequenas violências camufladas incutidas gradualmente em almas impregnadas ainda de ingenuidade, condenava aquela intromissão contínua no seu ser... O ósculo final ao cigarro esbateu toda a caldeirada de emoções que a entontecia. Levantou-se, ficando envolta numa poeira de pequenos fogos de artifício que se desfaziam no ar ou no mar. Subiu a um rochedo coberto por um musgo convidativo e voltou a recordar aqueles que não sabem e julgam saber. Seria possível viver assim, noite e dia, com a mente fechada mas inundada de preconceitos e contradições? Seria possível ser apologista de uma qualquer religião baseada nos conceitos do bem quando se preconizava precisamente o contrário? Seria possível que não acreditassem que a vida é um caminho feito de aprendizagens, é um caminho onde se vão coleccionando experiências? Seria mesmo possível que acreditassem já ter todas as respostas? Passou as mãos níveas por entre os curtos cabelos pretos, escondendo-os dentro de um boné quadriculado. Pintou os lábios de um vermelho vivo e avançou pela praia,deixando o seu rasto decidido pelo areal.
(Foto:Teresa Garcia)
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