sexta-feira, dezembro 15, 2006

Narrativa Aberta

O fervor da criação consumia-o. À sua volta, um monte periclitante de livros de estudo, naquela espera constante. Protegeu o seu corpo, envolvendo-o com o casaco comprido cor de fundo do mar. A invernia acariciava-lhe os cabelos soltos de uma escuridão azulada e segredava-lhe continuamente minúsculas ideias. De mochila à tiracolo, enveredou pela areia da praia, fustigada pela fúria do vento. Precisava daquele turbilhão meteorológico para lhe aclarar a mente e, assim, voltar ao seu trabalho. Pelejou contra a vontade demente de tirar um cigarro da sua bolsa. Tinha jurado, ontem, ao tomar o seu chá verde da meia noite, frente à Torre dos Clérigos maquilhada com os acessórios natalícios, que seria o último. No entanto, estava prestes a trair o seu juramento. Os seus dedos níveos esquivaram-se para dentro da mochila e, daí a uns minutos, apaziguara aquela vontade irreprimível. Parecia que quando o trabalho o invadia tudo lhe afluía à cabeça, mergulhando num remoinho de sentimentos e de sensações propícios à arte criativa. Mas, acima de tudo, ainda havia ela. Conhecera-a há alguns meses, partilhara momentos, pensamentos, ideias, risos. Esboçara-se uma amizade que começava a assumir contornos de uma desmedida paixão inapropriada. Mas a vida dele não era um filme, era bem real e um amor nascente ameçava rebentar, revirando-lhe a alma do avesso. O único problema é que os sentimentos são imparáveis, tais quais ondas do mar. Assolam-nos, por completo, e depois vão-se embora se não nos dedicarmos a eles. Ele sabia-o. Olhou, novamente, de esguelha a sua mochila entreaberta. Decidiu desaparecer no interior de um transporte público, arrastando consigo as reflexões, pronto para enfrentar a pilha de autores que lhe sorriam por contribuírem para o enriquecimento do seu intelecto.